Desconcerto é um projeto de Aruan Mattos, Flavia Regaldo e Manuel Andrade e consiste na gravação de áudio analógica/mecânica em superfícies de CDs inutilizados. A partir de uma agulha de cateter e um falante são gerados microsulcos em forma espiralada em gravação análoga à de vinil.
O CD se mostrou perfeito como suporte. Primeiro porque é redondo, liso e tem um furo no meio, depois porque existem aos montes e gratuitamente como descarte de uma sociedade consumista.
Para além de um simples anacronismo o conteúdo das gravações se conectam à cidade e ao tempo. Afinal, usar CDs já obsolescidos para fazer gravações analógicas, vai além das profecias catastróficas do apocalipse digital. Sendo assim, descemos para o centro da cidade em busca de referências sonoras da realidade e atualidade da cidade, entrevistando diversas pessoas que por ali trabalhavam, pedindo-as que falassem de seus cotidianos no centro, os caminhos percorridos, os pontos de referência.
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9 de Novembro de 2010
Céu nublado. Saímos de Santa Teresa, em direção ao centro. Cruzando a Francisco Sales, um estranho acaso pôs em nosso caminho um velho mural de bar que, apesar de provavelmente ter sido trocado por um moderno "backlight" de lona, ainda registrava os preços atuais. Uma a uma, um a um, letras e números que jamais se obsoleceram, ficaram resgatados em nossos bolsos.
Chegando à Sapucaí, já podíamos ver ligadas as fontes da Praça da Estação, o Edifício Itatiaia, o Galpão do 104 e as árvores ao longo do eixo que liga a linha de trem à Rodoviária. Escada abaixo, afundamos no solo e passamos por debaixo do último trilho que ainda transporta passageiros entre capitais do país, e assomamos, desta vez, dentro daquele cenário que antes só de cima víamos. Respingos da fonte refrescam a aridez da praça. E seguimos cruzando o rio por onde hoje não circula mais água, mas automóveis.
Na Rui Barbosa e ao longo da Santos Dummont pedimos às pessoas que cantassem uma lembrança. Em praça, em trânsito, entre corte de cabelos e escovas, balas e jabuticabas, espera no ponto, na lida do dia, afinados entre trabalhos e cantorias, ficaram saudades, apertadas nos ônibus.
No pedido, datas e referência ao cotidiano no centro, caminhos, ruas e circulacoes. Momento presente. Memórias.
A chuva engrossou.
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Sem perceber, o senhor das balas nos dá referências claras sobre o ideal de justiça capitalista que vê como um inimigo o ambulante que, criativamente, foge ao esquema selvagem do “Mercado de Trabalho”, adocicando, perfumando e colorindo as vias cinzas de uma sociedade mecanizada...
"Só o tempo da Jovem Guarda mesmo que a gente gosta mais, né? Todas elas do Rei, né? por exemplo é... aquela música “Quando” né? Que marcou muito naquela época da Jovem Guarda... a gente era muito jovem naquela época, né? Todo mundo queria ser cantor naquela época, né? (Risadas), não podia ver a pessoa cantar que a gente queria ser cantor também, via o pessoal famoso cantando, pelo rádio, a gente acompanhava, mas não tinha condições de cantar no interior, né?
Cantar, cantar não é comigo, não, meu négocio é so vender minhas balinha mesmo. Eu trabalho como ambulante, já tem uns vinte anos, tinha barraca, perdemo as barraca na rua, esparro da rua, fomo pro shopping não adaptemo no shopping porque... o aluguel era muito caro, na época, as mercadoria não vendia, a gente teve que se virar pra rua, né?
Só me vivo através dos meu cliente, são meus amigos, não são cliente, são meus amigos, é o que me dá a sustentação do pão de cada dia...
Aqui eu vou aqui na Santos Dumont, desço a Caetés, Avenida Amazonas, Espírito Santo, de vez em quando eu vou na Paraná mas não fico muito que os fiscal não deixa. Correria, toda hora tão atrás da gente, já pegaram várias vezes minha mercadoria, levaram não devolveram, abusam da gente quando pegam a mercadoria. A gente é muito discriminado pela rua a fora, porque a gente é ambulante, discriminação total pelo, pela parte da prefeitura, administração, nossos governantes também não olham pra pessoa mais carente.
Todo dia, de segunda a sábado, só descansa aos domingo. Quando não to andando eu to parado aqui nesse pontinho aqui, oiando prum lado e pro outro pra os fiscal não vir correndo atrás de mim. Quando eles chega eu tenho que sair correndo, e é a correria.
Hoje é 9 de novembro de 2010".
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Dias e milimetros contados.
Macro e microgambiarras. Tico-tico, correias, madeira, polias e agulhas.
Os primeiros sinais de som entre arranhoes e o grito Soy loco por ti america.
A Nega do cabelo duro marcou o seu falante. Nega, preta, neguinha...
Trilhas perdidas, ruido, novela. Música de chuveiro. E o Rei a confirmar sua glória.
Ângulo certo, correr o risco na trajetoria lenta ao centro do disco. Uma agulha falante marca a superfície lisa dos que outrora eram chamados de CDs, constante obsolecencia.
O analógico atual sobre o digital anacronico. Estranha retrogradação.